terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

ACASO



No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.
Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal ...

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.

Álvaro de Campos, in "Poemas"


Foto da Net

GOLDFINGER



5 comentários:

Anónimo disse...

Mas esta blogosfera hoje anda toda numa de romantismo???!!!

Maria disse...

As angústias existenciais dos nossos poetas maiores...
Obrigada pela partilha.

Beijinho

Mare Liberum disse...

Li e reli o poema. Deliciada! Primeiro porque gosto de poesia, depois porque Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Chevalier de Pas conseguem ser um e outro e outro... sendo o mesmo. E a rapariga loira quem seria?

Jinhos mil

Elvira Carvalho disse...

Gostei do poema. Como sabe eu gosto muito de poesia. Balsamo para quando estou triste, riso para quando esrtou alegre.
Um abraço

gaivota disse...

qualquer dos "fernandos pessoas" sempre tão bom de ler e reler!
porque o nome tanto faz, alberto, álvaro, ricardo, sempre pessoa!
beijinhos