Foram Amândio e Maria Helena, incumbidos das "relações públicas" da operação, quem explicou às hospedeiras o que se passava. Foi chamado o mecânico de bordo, António Coragem, para ir ao porão buscar as malas. Aos passageiros que se sentavam nas últimas filas foi pedido que, por motivos de serviço, se mudassem para lugares livres à frente. Fechada a cortina separadora, a área de trás do avião ficou reservada para as operações patrióticas.
Tudo começou a acontecer com incrível naturalidade. Camilo saiu do cockpit, sentou-se num dos lugares da frente e desabafou: "Foi fácil de mais! Assim não tem graça!" O comandante, depois de ter pedido aos piratas que não exibissem as armas em frente dos passageiros, mandou servir champanhe. Depois whisky. As hospedeirãs andavam numa roda viva, aparentemente até divertidas. Luísa, ainda em estado de beatitude depois das emoções da noite anterior, em Casablanca, preocupou-se por um momento com a segurança do amante Marcelino, embora se esforçasse por o não dar a entender. Mas logo percebeu que estava entre gente correcta.
Já Pilar, que fazia o seu último voo, porque tinha casamento marcado e decidira deixar de trabalhar, a certa altura sentou-se cabisbaixa, e deixou cair uma lágrima pelo rosto moreno.
"Que tem a menina?", condoeu-se o garboso Amândio. "Por que chora?" "Eu tinha combinado com o Gil, que é o meu noivo, ir hoje ao cinema em Lisboa, à primeira matiné do Império".
Amândio sacou do lenço, limpou as lágrimas à donzela. "Não se apoquente. Dou-lhe a minha palavra de honra que, se não for à primeira, háde ir à segunda matiné do Império com o Gil".
A seguir, foi a vez do comissário Orloff proporcionar a Amândio mais um daqueles momentos cinematográficos que ele adorava. "Fique bem claro que estamos a fazer tudo isto porque somos obrigados, pela força das armas!", declarou heroicamente a Amândio. Este não hesitou: lançou a pistola para rima de um dos bancos (um que estava mais próximo dele do que do comissário, pelo sim pelo não). "Bom, diga lá agora: colabora ou não?" Orloff não respondeu.
O comandante mandou abrir mais champanhe, distribuir flores, e os passageiros, surpreendidos com tanta prodigalidade, riam e cantavam, sem se aperceberem de nada, quando finalmente chegaram a Lisboa. Marcelino comunicou à torre de controlo que ia aterrar e aproximou-se da pista. No momento em que parecia que ia tocar o solo, Palma Inácio irritou-se. "Ai vai aterrar? Então ficamos todos aqui!", gritou, e lançou-se sobre os comandos, embora, no íntimo, nem por um segundo tencionasse fazer despenhar o avião. Era um verdadeiro dogma do grupo não pôr em perigo a vida de inocentes, nem que para isso tivessem de ser presos, ou mesmo sacrificados. "Os fins não justificam todos os meios", costumavam dizer Galvâo e Camilo, nas suas (poucas) conversas teóricas.
Mas Marcelino percebeu a mensagem. Dirigiuse de novo à torre; "Peço autorização para voar baixo sobre Lisboa".
Para sua surpresa, a resposta surgiu imediata: "Autorização concedida". Pensou: "Estão feitos uns com os outros, não há outra explicação.
Isto afinal é uma coisa séria". E passou a agir com mais prudência, "Remeteu" motores, começou a sobrevoar a cidade, desligou os altifalantes do cockpit e sussurrou ao microfone: "Informo que o avião está a ser assaltado. É uma operação política do Henrique Galvâo. Querem lançar panfletos e regressar a Marrocos". Silêncio do outro lado. Depois: "Comandante, pode repetir, se faz favor?" E antes que pudesse recomeçar a falar, Marcelino ouviu, nos auscultadores, a voz bem conhecida do general da Força Aérea Costa Macedo, que andava nas imediações a voar num Dakota: "Não é preciso repetir. Já percebi tudo! Vou já comunicar com a Batina, para ver se mo apanham ".
A Batina, designação por que é conhecido o centro de radar militar de Montejunto, comunicou pouco depois: "Não vemos o aviáo". Ao que Costa Macedo respondeu: "Não? Então é porque já o abateram".
Paulo Moura
Foto da Net
GOLDFINGER
Sem comentários:
Enviar um comentário